Blog da Amazônia - ALTINO MACHADO
POR RENAN ALBUQUERQUE
Estar esgotado, na visão do
filósofo francês Guile Deleuze, é não estar apto para a realização de
feitos importantes. O esgotado é aquele indivíduo ou grupo excluído
socialmente que perdeu ou lhe foi tirado o direito de decidir sobre si e
o mundo ao seu entorno. É dentro desse conceito que se insere o boi
Campineiro — o terceiro e apagado boi de Parintins, município a 375
quilômetros de Manaus, capital do Amazonas.
O esgotamento (ou apagamento) cultural sofrido pelo bumbá verde e
amarelo de Parintins ocorreu em 1983 e teve duas matrizes: a primeira,
oriunda da grande mídia e sua portentosa indústria cultural que só
enaltece o vendável, já arrematada teoricamente pelos Frankfurtianos; e,
a segunda, pelo poder do capital, que segrega quem não tem e não
consegue ter dinheiro disponível para se inserir na mídia.
Como se percebe, a história se repete: mídia e capital andam juntas e
bebem do mesmo vinho. No caso específico do folguedo popular de
Parintins, o boi parintinense, herdado dos maranhenses, que o herdaram
dos europeus, que o herdaram dos ancestrais greco-romanos, o Campineiro
sofreu um duro golpe em 1983, e que completou no mês passado três
décadas: ele foi sumariamente apagado da história dos bois de Parintins.
Para se apagar uma cultura popular, como ocorreu no caso do boi
Campineiro, esconde-se forçadamente e de forma ininterrupta uma
manifestação folclórica até que ela seja sufocada e perca a
autenticidade. Com a perda da autenticidade, um dos últimos estágios do
apagamento, a manifestação tende a desaparecer e tornar-se apenas
história passada, em que não se pode mais fazer o resgate efetivo.
Infelizmente, a vítima, em 1983, foi o bumbá que veste as cores da
bandeira do Brasil. O Campineiro e seu bailado sob os auspícios do
estandarte verde e amarelo de seu boi, desapareceu da face da Ilha
Tupinambarana para nunca mais voltar há 30 anos. E quem perdeu com isso
nas últimas três décadas não foram os parintinenses apenas, enquanto
cidadãos amazônicos, mas a cultura amazônida e o folclore brasileiro.
A mídia nacional e algumas emissoras mundiais acolhem atualmente
Garantido e Caprichoso como os únicos bumbás existentes. Nem se ouve
falar no Campineiro. As belas morenas do vermelho e do azul são clicadas
por lentes famosas e desfilam sua fenomenal beleza para todos, enquanto
as caboclas que bailaram e se emocionaram um dia pelo boi do Aninga
servem cafezinho aos turistas com pinta de bacana, lustrados dentro de
um bumbódromo cuja reforma custou R$ 48 milhões (pagos em 2013) e gerou
só um mero punhado de empregos formais aos parintinenses.
A história se repete, ou como farsa ou como tragédia. Se a mídia e o
capital excluíram o Campineiro em 1983 porque ele não se adequava a
anseios venais, em 2013 o governo estadual não quis investir dinheiro em
escolas e hospitais de Parintins para, mais uma vez, privilegiar a
mídia e os especuladores do capital. Portanto, Garantido e Caprichoso
são, indiretamente, responsáveis pelo esgotamento cultural do
Campineiro, por mais que não aceitem esse fato.
Neste ano, o ato de resgatar a história do boi Campineiro, tirá-la do
limbo e apresentá-la à sociedade é, por si mesmo, uma ação importante e
rebelde. Ela mostra que o “V de Vingança” dos mascarados na rua em todo
o pais é também o “V de Vingança” dos sem hospitais de Parintins, dos
sem escola de Parintins e dos sem boi e sem cultura da Parintins sem o
Campineiro.
O bumbá do Aninga foi excluído porque não tolerou a submissão ao
estereótipo dos meios de comunicação de massa. Esse foi o problema: o
Campineiro não quis aceitar sua ressignificação enquanto folclore de
massa e descaracterizado, sendo por isso repelido e afastado; sendo
relegado e moralmente desvinculado de uma tradição que se completava com
Garantido e Caprichoso.
Tudo por obra da “santa pós-modernidade”, que reconfigura o popular
de tal maneira que ele passa a ser modificável e mutável ao prazer das
convenções sociais, políticas e econômicas, as quais, por sua vez, estão
atreladas aos meios de comunicação de massa e dependem de dinâmicas
factuais. Ao não colaborar com esse status quo, o esgotamento foi a sina
do boizinho rural da Ilha Tupinambarana, o verdadeiro boi dos pobres.
É no mínimo curioso que, na Amazônia, um importante folguedo nas
cores verde e amarelo seja hoje um folguedo esgotado. Justamente as
cores do panteão nacional estão fora da disputa. É hora, sim, de
repensar valores e sair às ruas. Não só por saúde, educação e honra e
moral na política. Mas também por honra e moral no folclore popular no
maior bioma de Floresta Tropical da Terra.
Renan Albuquerque é graduado em comunicação social, mestre em
psicologia social, doutor em sociedade e cultura na Amazônia. Professor
adjunto e pesquisador da Universidade Federal do Amazonas (Ufam),
atualmente é vice-coordenador do curso de jornalismo no polo de
Parintins. Contextualizações sobre o terceiro boi estão contidas no
livro "Boi Campineiro: a história do Festival de Parintins que não foi
contada", de autoria do jornalista Jonas Santos, organizado por Renan
Albuquerque. A edição é distribuída gratuitamente para bibliotecas e
centros de pesquisa de universidades e instituições de ensino.
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